quarta-feira, 27 de maio de 2009

carta aberta ao Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro


Prezado senhor Prefeito Eduardo Paes

O Rio de Janeiro parece ter iniciado uma nova etapa em seu desenvolvimento, depois de sua posse, em especial com a iniciativa do choque de ordem - tão necessário, para restituir o bom funcionamento das atividades urbanas - e dos esforços ligados à candidatura a cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2016, para o que está-se vendo uma inteligente consonância política poucas vezes empreendida entre a prefeitura e os governos estadual e federal. O combate à favelização, mesmo que ainda tímido, vejo como um dos pontos positivos do choque. Pelo respeito aos interesses dos cariocas, ainda que isso devesse ser simplesmente obrigatório da parte dos nossos governantes, minhas felicitações.

De minha parte, tenho procurado contribuir efetivamente, lançando ideias e mesmo críticas na ouvidoria do portal eletrônico do governo municipal, sempre buscando antever problemas ou mesmo apontá-los onde já existem e eventualmente ainda não tenham sido detectados. Também ouso enviar sugestões as mais diversas, vislumbrando melhorias que podemos ter em prática. Enfim, com a frequência com que escrevo, tenho sido uma espécie de 'chato', com vários atendimentos registrados sob as diversas rubricas existentes.

Neste espírito, de contribuir para um Rio de Janeiro melhor, gostaria de conclamá-lo, senhor Prefeito, a verdadeiramente brigar por nossa terra, tocando o seu brio como carioca igual a nós. Lutar por uma cidade que tem história e tradições, como capital do império e da república (única sede de um reino europeu fora da Europa, aliás, quando da vinda de Dom João VI há mais de 200 anos); como cidade-estado nos tempos da saudosa Guanabara, em que nasci; e, sempre, como a maior referência do Brasil em seu próprio território e no mundo inteiro. Uma cidade esplendorosa em sua beleza natural e insuperável no modo de ser de seu povo, que vem perdendo fôlego há décadas, pela falta de interesse de seus homens públicos, do executivo e do legislativo, em defender nosso vasto patrimônio. Patrimônio natural, degradado pela favelização incontida; patrimônio político, com os prejuízos gerados pela transferência da capital federal e, 15 anos depois, pelo desastre da assimilação de hábitos e práticas advindas da fusão com o antigo Estado do Rio de Janeiro; patrimônio econômico, com a crescente perda de parque industrial, mormente para São Paulo e influenciada em muito pela degeneração urbana propiciada pelas favelas; patrimônio cultural, com a falta de zelo para com os ícones relevantes que a cidade possui, relegados a um plano de importância bem aquém daquele que merecem.

Um desse ícones, senhor Prefeito, está em toda parte e desenha intensamente a história e o dia-a-dia do Rio de Janeiro: as pedras portuguesas de suas calçadas. Algo tão carioca e tão intimamente característico da cidade quanto o nosso sotaque de erres arrastados e esses chiados. O assunto veio à baila recentemente, provocado por reportagem do jornal O Globo. Em 2007, a ex-vereadora Cristiane Brasil (PTB) propôs uma lei - número 4.658 - que, em sua essência, determina a substituição das pedras portuguesas por 'piso antiderrapante' (conceito não identificado) em toda a cidade, segundo o noticiário com base no argumento de que as pedras mal assentes seriam um perigo iminente para a população idosa, sujeitando-a a acidentes e quedas. (A propósito, pedras portuguesas não são lisas a ponto de não poderem se encaixar na categoria de 'piso antiderrapante', diga-se de passagem. Sob esse aspecto, o teor da lei, que me parece ruim desde a concepção da ideia original, não as exclui, de fato, do rol dos possíveis materiais para revestimento de calçadas...)

Ora, então o problema, pelo que vemos, não são as pedras em si, mas sim as suas eventuais má colocação e inadequada manutenção, que poderiam pôr em risco não apenas idosos, mas qualquer pedestre. O que torna a lei mal conceituada, sujeita à perfeita comparação com a piada do sujeito que, em descobrindo que sua mulher o traía usando o sofá da sala, resolveu o problema livrando-se do sofá. Aliás, outra vez assunto digno do interesse recente de O Globo: mais uma daquelas leis que não têm importância ou possuem serventia duvidosa, como a instituição do 'bolsa-invasão' da vereadora Lucinha ou a proibição de palavras estrangeiras em anúncios (numa cidade de projeção internacional), do vereador Roberto Monteiro.

Na época da aprovação da lei contra as pedras portuguesas em plenário, foi interposto veto pelo ex-prefeito Cesar Maia, muito bem embasado e compreendendo o erro crasso que seria resolver o problema das pedras fora do lugar com o ato singelo e inócuo de 'livrar-se do sofá'. O veto apontava, em síntese, a interferência da câmara em assuntos da alçada do poder executivo e uma falha legal, a de não haver a devida designação da fonte de custeio para as intervenções necessárias.

A importância das calçadas em pedra portuguesa para a cara do Rio de Janeiro aparece bem nitidamente num filme de 1936, de título 'Rio de Janeiro - City of Splendour', disponível para descarga na internet. Trata-se talvez das primeiras imagens em movimento da cidade feitas em cores, de um Rio que seguramente contava com um carinho especial de seus administradores por ser a capital do país. Num determinado momento, decorridos 2min35s de exibição, o locutor diz textualmente, sobre imagens da Praça Floriano, na Cinelândia: 'The most unique feature of the clean and spacious streets is the decorative mosaicwork that adorn the sidewalks. Almost every block has a pavement with pattern so individually designed, that one could find its way about the city by becoming familiar with them'. Vertendo livremente para o português: 'O aspecto mais singular das ruas limpas e largas é o mosaico decorativo (de pedras portuguesas) que adorna as calçadas. Praticamente todos os quarteirões têm pavimentos com padrões concebidos com tamanha exclusividade, que uma pessoa poderia identificar onde está apenas pelos desenhos no chão'. Não é preciso esforço para entender como a arte da calcetaria - aliada a uma boa manutenção, com varrição e lavagem periódicas das calçadas - contribuía para que a Cidade Maravilhosa detivesse esse seu título. E pode continuar contribuindo.

A prefeitura dispõe, como o senhor bem deve saber, na estrutura da Secretaria de Obras e Conservação, de um organismo cuja função precípua é o controle das intervenções - obras - em logradouros públicos: a O/COR (Comissão Coordenadora de Obras e Reparos em Vias Públicas). Se à Coordenadoria Geral de Conservação cabe construir calçadas bem feitas, à O/COR cabe fiscalizar a realização de obras em passeios já construídos, cuidando para que as empreiteiras recomponham a calcetaria de modo correto, sem falhas, nem remendos.

E, mais ainda: se não existem mais técnicos com a qualidade daqueles artistas portugueses que nos ensinaram a compor calçadas desenhadas, que a prefeitura se empenhe em formar novos profissionais nesta técnica! Que se busque quem sabe fazer, para poder ensinar. Abrindo com isto novas oportunidades de trabalho, tanto aos calceteiros quanto a artistas, que a prefeitura pode convocar, em concursos, para desenhar passeios mais bonitos para a cidade, sem a frieza das grandes placas de concreto armado ou dos ladrilhos hidráulicos sem vida, que tornaram insípidos lugares como a Rua do Catete, a Taquara (Estrada do Tindiba e Avenida Nélson Cardoso) e a Praça Saens Peña.

Mire-se, senhor Prefeito, nos bons exemplos das reurbanizações recentes do Leblon (Avenida Ataúlfo de Paiva), de Vila Isabel (Boulevard Vinte e Oito de Setembro, com longas pautas musicais de fora a fora), da Rua do Lavradio, da Praia do Flamengo, da Rua da Glória e do Grajaú (Rua Uberaba), onde a graça das pedras em duas ou três cores (a branca deixando claro o piso) e a composição com outros elementos, como granito (pedra bruta), faixas discretas de concreto armado e blocos intertravados, usados com a devida parcimônia, criam um passadiço agradável e bonito, adjetivos bem próprios do Rio de Janeiro. Há ainda belos trabalhos em pedras grandes, na Avenida Erasmo Braga e na Rua Primeiro de Março. Sem falar no marco que são as calçadas da Praia de Copacabana, projeto do notável Burle Marx. Além disso, a sábia diagramação de desenhos propicia que intervenções localizadas possam ser feitas de modo limpo, com a reconstituição da parte atingida sem remendos nem imperfeições, já que toda uma área modulada pode ser desfeita e, em seguida, refeita com perfeição.

Paris, referência mundial no trato com o aspecto que toma uma cidade, está cogitando um imenso projeto de reforma urbanística para breve, que certamente não porá fim a toda a beleza já consagrada. As cidades precisam modernizar-se, mas não podem perder certos valores que lhes são tão caros e que guardam tanta ligação, até sentimental, com seus habitantes. E seus administradores precisam ser sensíveis a esse detalhe, para não cometerem pretensas benfeitorias que a História venha tristemente a cristalizar como idiotices ou até mesmo atentados.

Um dia, senhor Prefeito, acharam que era bobagem manter os bondinhos de Santa Teresa, bairro onde nasci, funcionando. Eram 'velhos', 'ultrapassados' e 'não atendiam à necessidade de transporte do local'. Quiseram extingui-los da paisagem carioca. Felizmente o erro da erradicação não foi cometido e, assim, não perdemos esse outro patrimônio, cultural e turístico, do Rio, hoje administrado pela prefeitura e, cabe frisar, merecedor de uma atenção um pouco maior do que a que vem recebendo.

Que os nossos bondes então, entre outros casos notáveis, nos sirvam de lição, em relação ao que pensar para as nossas calçadas. E que atire a primeira pedra - portuguesa - aquele insensato que não quiser ver as ruas do Rio de Janeiro melhores e mais bonitas ainda.

Atenciosamente

MARCELO FERNANDES ELIZARDO CARDOSO
Engenheiro Civil

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